Homilia de D. José Policarpo na Peregrinação Internacional de Outubro
“Como Maria viveu o Sacerdócio do seu Filho, Jesus Cristo”
1. Neste Ano Sacerdotal, quando o País inteiro se prepara para receber o Sucessor de Pedro, cabeça do Colégio dos Apóstolos, somos convidados a interiorizar essa manifestação inaudita do amor de Deus pela humanidade, que é a dimensão sacerdotal, cuja plenitude se exprimiu em Nosso Senhor Jesus Cristo, Filho de Maria, que pela Sua vida e pela a Sua morte reconduziu definitivamente todos os homens à intimidade com Deus, Trindade Santíssima, comunhão de amor. Esta função sacerdotal, plenamente realizada por Jesus Cristo, é vivida pela Igreja, Povo Sacerdotal, a que preside, de forma perene e definitiva, o próprio Jesus Cristo, através daqueles a quem consagrou pelo Espírito Santo para exercer, em seu nome, as funções sacerdotais da Igreja, Povo de Deus. Pelo lugar especialíssimo que ocupa na vida e missão de Jesus Cristo, assim como na Igreja, que a aclama como sua Mãe, porque é o seu “ícone” inspirador, queremos contemplar a participação de Maria no sacerdócio do seu Filho Jesus Cristo. Toda a Igreja, povo sacerdotal e todos os sacerdotes que tornam presente na Igreja o sacerdócio de Jesus Cristo, podem contemplá-la como Mãe e modelo, encontrando nela as expressões próprias da atitude sacerdotal.
2. O sacerdócio é um mistério de amor, do amor infinito de Deus pelo homem que criou à sua imagem, que destinou a partilhar, na intimidade com Ele, a comunhão de amor, onde encontrará a plenitude da vida. Desse desígnio eterno o homem afastou-se e continua a afastar-se pelo pecado. O sacerdócio resume toda a pedagogia salvífica de Deus: suscita na humanidade o fermento dessa vocação sublime de amor; apesar do pecado, renuncia aos critérios do mundo e deixa-se guiar pela Palavra do Senhor, oferecendo-lhe a sua vida e aprendendo a vivê-la como expressão de louvor. Para isso escolheu e formou um Povo a que o Profeta Isaías chama “linhagem que o Senhor abençoou” (Is. 61,9). Expressão de Deus em favor da humanidade, o Povo de Deus é, na sua identidade mais profunda, um povo sacerdotal, capaz de reconhecer o amor salvífico de Deus e de se assumir como um Povo que louva o Senhor.
O sacerdócio é um mistério de amor, do infinito amor de Deus pelo Seu Povo, que volta a poder desejar a plenitude do amor, em Deus, e volta a ser capaz de viver a vida neste mundo, como antecipação dessa plenitude final. O Santo Cura d’Ars, de quem celebramos este ano os 150 anos da sua morte, escreveu um dia: “Oh, o padre tem alguma coisa de grande. Não se compreenderá bem o sacerdócio senão no Céu. Se o compreendêssemos na Terra, morreríamos, não de espanto, mas de amor” (1).
Mas não foi apenas um santo sacerdote que reconheceu que o sacerdócio é um mistério de amor. Santa Teresa de Lisieux, uma humilde carmelita, sente-se devorada pelo desejo de contribuir para a salvação do mundo, quereria ser apostola desde o princípio do mundo até à escatologia e quereria dar toda a sua vida derramando o sangue como os mártires. Mas Deus fez-lhe perceber, lendo São Paulo, que, no amor, ela poderia ser tudo isso e escreve: “compreendi que a Igreja tem coração, um coração ardente de amor; compreendi que só o amor fazia actuar os membros da Igreja e que, se o amor viesse a extinguir-se, nem os apóstolos continuariam a anunciar o Evangelho, nem os mártires a derramar o seu sangue; compreendi que o amor encerra em si todas as vocações, que o amor é tudo e que abrange todos os tempos e lugares, numa palavra, que o amor é eterno. E então (…) exclamei: a minha vocação é o amor” (2).
Nem podemos imaginar a intensidade com que Maria amou o mundo, encarnando a intensidade do amor salvífico de Deus. Essa intensidade comoveu o próprio coração de Deus, a ponto de o mensageiro divino a saudar como a “cheia de graça”, aquela que vive a plenitude do amor. Na sua vocação, ao aceitar o chamamento de Deus, onde ela identifica o desígnio salvífico, ao partilhar com o seu Filho o sacrifício redentor, Maria viveu, na radicalidade do seu coração o amor sacerdotal. Como mais tarde a Igreja, ela percebeu e aceitou que a sua vocação e a sua missão era o amor.
3. A dimensão sacerdotal do Povo de Deus e as suas instituições inserem-se no dinamismo da redenção, levando um Povo “que o Senhor abençoou” a recuperar a sua vocação primordial de comunhão com Deus. No desígnio de salvação, esta não consiste, apenas, na plenitude escatológica. A comunhão com Deus é para ser vivida já neste mundo, pois ela define o mistério da vida. O primeiro fruto da dimensão sacerdotal é levar o Povo a louvar o Senhor, em tudo o que se é e o que se faz: rezando, toda a Liturgia é um acto de louvor, praticando o amor e a justiça, proclamando as maravilhas de Deus. Israel e a Igreja são chamados a ser um povo que louva o Senhor. A primeira manifestação desse louvor é reconhecer a acção de Deus em favor do Seu Povo, na consciência de que, sem Deus, os homens não conseguem ultrapassar a fronteira entre o pecado e a graça. A confissão de fé dos crentes de Israel é recordar, fazer memória, das maravilhas que Deus realizou em favor do seu Povo. Encontramos na primeira leitura que escutámos (Is. 61, 9-11) essa atitude de louvor: “Exulto de alegria no Senhor, a minha alma rejubila no meu Deus, que me revestiu com as vestes da salvação e me envolveu num manto de Justiça”. O Profeta Isaías sente essa misericórdia de Deus como expressão da sua ternura amorosa: “Como o noivo que cinge a fronte com o diadema e a noiva que se adorna com as suas jóias”.
Reconhecer e fazer memória da acção salvífica de Deus é a essência da dimensão sacerdotal. A própria Eucaristia, principal expressão do Povo Sacerdotal, onde se tona clara a especificidade do ministério dos sacerdotes e da sua convergência com a oferta do Povo Sacerdotal, é a memória da acção decisiva de Deus, em Jesus Cristo, para a salvação da humanidade. Maria fá-lo espontaneamente, assumindo atitude sacerdotal, ao reconhecer as maravilhas que Deus realiza nela e que relaciona com as maravilhas que fez em favor do seu Povo: “A minha alma glorifica o Senhor… o Todo Poderoso fez em mim maravilhas, Santo é o seu Nome… acolheu a Israel seu servo, lembrado da sua misericórdia, como tinha prometido a nossos pais” (cf. Lc. 1,46-55).
4. A dimensão sacerdotal exprime-se, também, na oferta a Deus de sacrifícios de louvor. A melhor expressão do louvor que o homem pode ter é oferecer a sua vida a Deus e viver a vida de modo digno para ser oferecida. São Paulo pede isso aos cristãos de Roma, como ouvimos na segunda leitura: “Peço-vos, irmãos, pela misericórdia de Deus, que vos ofereçais a vós mesmos, como sacrifício vivo, santo, agradável a Deus, como culto espiritual” (Rom. 12,1). A consciência teológica de Israel vai percebendo que na oferta pura que o justo faz da sua vida a Deus, ele merece a redenção dos seus irmãos. Encontramos a plenitude desta oferta sacerdotal da própria vida, no sacrifício de Cristo de que a Igreja faz memória sempre que celebra a Eucaristia.
Esta oferta total da própria vida, Maria fá-la desde o momento em que disse a Deus: “faça-se em mim segundo a tua Palavra” e radicaliza-a, para todo o sempre, aos pés da Cruz de seu Filho, oferecendo-O e oferecendo-se com Ele. Ela é verdadeiramente co-redentora. Este sacrifício perene de Jesus Cristo, não se repete, mas actualiza-se, como se fosse oferecido hoje, no poder sacramental da Igreja na Eucaristia e na presença amorosa de Maria na Igreja. A memória viva que guarda no seu coração daquele momento decisivo do Calvário é também uma forma de lhe dar actualidade na vida da Igreja. Com a Igreja, Maria oferece e oferece-se em cada Eucaristia.
5. Proclamar a Palavra que nos revela o amor de Deus e levar o povo a escutá-la e a segui-la, pondo-a em prática, é outra expressão da dimensão sacerdotal. Esta dimensão viveram-na apaixonadamente os profetas, deve devorar o coração dos sacerdotes que também são profetas. Maria é, também neste aspecto da dimensão sacerdotal uma estrela que nos guia. “Eu sou a escrava do Senhor, faça-se em mim segundo a tua Palavra” (Lc. 1,18). E nas Bodas de Caná convida os criados: “Fazei tudo o que Ele vos disser” (Jo. 2,5). Esse é o desafio que a Igreja, Povo Sacerdotal, faz ao mundo a que é enviada: escutai o que Deus vos diz; fazei tudo o que Ele vos disser.
6. A dimensão sacerdotal é, no meio dos homens, a manifestação da solicitude de Deus pelas necessidades do Povo e de cada um. Ele é o pastor do seu Povo, conhece as suas ovelhas, sabe do que precisam, cuida das doentes e das débeis, vai à procura delas, carrega aos ombros a que está ferida. Esta atenção à vida concreta de cada homem é desafio a toda a Igreja, Povo Sacerdotal, é-o particularmente para nós, sacerdotes, chamados a sermos presenças vivas de Cristo Bom Pastor. Nas Bodas de Caná, Maria mostra essa atitude pastoral de atenção ao pequeno-grande problema que afligia os esposos. Mostra-o quando diz a Jesus: “não têm vinho” (Jo. 2,5). Que solicitude, que atenção ao pormenor, que capacidade de avaliar um problema pessoal.
7. O sacerdócio é a expressão do amor de Deus e hoje sabemos o seu nome: é o Espírito Santo, o que realiza toda a obra de Deus em favor do seu Povo. O Espírito Santo é o segredo da acção sacramental. Todos os membros da Igreja são sacerdotes porque são ungidos pelo Espírito Santo. Os sacerdotes são ungidos e consagrados pelo Espírito na sua ordenação. E todos sabemos que a fecundidade sacerdotal é obra do Espírito Santo, a certeza da Igreja de “que a Deus nada é impossível”. Contemplemos a missão de Maria como um sacerdócio, em dois momentos da salvação a acontecer. Na Anunciação, o Anjo diz a Maria: “O Espírito Santo virá sobre ti e a força do Altíssimo te cobrirá com a Sua sombra” (Lc. 1,35). E, na Eucaristia, antes da consagração do Pão e do Vinho, o sacerdote reza assim: “santificai estes dons, derramando sobre eles o vosso Espírito, para que se convertam, para nós, no Corpo e Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo” (Euc. II). De facto a Deus nada é impossível. A acção do Espírito em Maria prolonga-se na acção da Igreja, no seu poder sacerdotal. O amor de Deus continua a transformar a história.
Santuário de Fátima, 13 de Outubro de 2009
† JOSÉ, Cardeal-Patriarca
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